Corticoide inalado nas doenças respiratórias crônicas: Quando menos pode ser mais

Setembro, 2023

 

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Introdução

Os corticosteroides têm muitos efeitos anti-inflamatórios específicos sobre as células e tecidos orgânicos já extensivamente descritos. Eles também reduzem o número de linfócitos T, células dendríticas, eosinófilos e mastócitos nas vias aéreas e reduzem a produção induzível de óxido nítrico(1). Por estas propriedades anti-inflamatórias e imunossupressoras, passaram a ser amplamente utilizados no tratamento de algumas doenças pulmonares.

Os corticosteroides sistêmicos mostraram-se eficazes no tratamento da asma aguda pela primeira vez em 1956(2). O dipropionato de beclometasona (BDP) foi introduzido no início da década de 1970 como o primeiro corticosteroide inalatório (CI) a apresentar mais atividade anti inflamatória tópica do que sistêmica. Posteriormente, demonstrou-se consistentemente que os CIs melhoravam a função pulmonar, diminuíam a hiper-responsividade brônquica, reduziam as exacerbações da asma o que resulta em visitas a emergência e hospitalizações, além de diminuir o risco de morte e reduzir a necessidade de agonistas β2 de curta duração e corticosteroides orais em todas as faixas etárias(3). E isso representou um grande avanço terapêutico.

Se a DPOC, também uma doença de via aérea, mesmo com sua natureza heterogênea apresentava alterações inflamatórias como resultado da inalação da fumaça do cigarro, partículas nocivas e/ou gases de outras fontes, não poderia apresentar uma resposta favorável ao uso do CI? Já era descrito que havia a presença de um aumento do número de células inflamatórias em biópsias de vias aéreas e lavado broncoalveolar (neutrófilos, macrófagos alveolares e linfócitos T) nos pulmões de fumantes suscetíveis ao desenvolvimento da DPOC, o que poderia atuar diretamente nas vias aéreas e no tecido alveolar, promovendo estreitamento das vias aéreas e limitação ao fluxo aéreo(4). Por isso, a doença é caracterizada por sintomas respiratórios persistentes e limitação progressiva ao fluxo aéreo. Dentre os objetivos do manejo da DPOC estão minimizar o impacto dos sintomas, melhorar os níveis de tolerância a atividade física e diminuir o risco futuro de exacerbações responsáveis pela progressão da doença. Atingir essas metas é um desafio não somente pela natureza heterogênea da DPOC, mas também a uma compreensão incompleta da fisiopatologia da doença. Esses dados, em conjunto com a efetividade dos corticosteroides inalatórios (CIs) no tratamento da asma, incentivaram o uso rotineiro de CI em pacientes com DPOC.

Uma revisão sistemática com metanálise publicada em 2010 avaliou os estudos de monoterapia com CI, controlados por placebo, em pacientes com DPOC. Esta metanálise sugeriu que havia uma modesta redução do risco relativo de exacerbações. Na análise de sensibilidade, o efeito benéfico foi observado apenas em pacientes com valores de VEF1 inferiores a 50%. Houve presença de heterogeneidade estatística significativa, sem evidência de viés de publicação. Uma análise de meta-regressão também não conseguiu demonstrar uma relação linear entre os valores de VEF1 e o declínio das exacerbações da DPOC com o uso de CI(5). Nas últimas duas décadas, mais de 40.000 pacientes com DPOC participaram de ensaios terapêuticos em larga escala com CI. O que aprendemos com esses estudos? Primeiro, os CI reduziam o risco de exacerbações, mas os benefícios gerais eram relativamente modestos. Em segundo lugar, a terapia com CI poderia induzir danos(6). Posteriormente, diferentes combinações de broncodilatadores e diferentes tipos de CI foram avaliados em ensaios clínicos e outro grande questionamento feito foi se nos pacientes com DPOC que se queixavam de dispneia e/ou intolerância ao exercício, a terapia tripla com CI seria mais eficaz e igualmente segura em comparação com a terapia dupla ou monoterapia com broncodilatadores de longa duração. Estas respostas foram obtidas também através de uma metanálise que comparou terapia tripla com terapia dupla ou monoterapia com broncodilatadores de longa duração e demonstrou que o uso de terapia tripla resultou em uma redução de 25% no risco de exacerbação da DPOC e um aumento de 47% no risco de pneumonia. No entanto, não houve diferenças significativas na dispneia ou hospitalizações, e houve uma melhora na qualidade de vida, que, no entanto, não atingiu o limiar pré-especificado para a diferença mínima clínicamente significativa(7).

Nos últimos anos fica cada vez mais evidente que os CIs combinados com broncodilatadores de longa duração são indicados para pacientes com DPOC que apresentam exacerbações apesar do tratamento com β 2-agonistas de longa duração (LABAs) e antimuscarínicos de longa duração (LAMAs)(8). Além disso, estudos recentes têm demonstrado que a eficácia dos CI na prevenção de exacerbações é maior em pacientes com altas concentrações de eosinófilos sanguíneos, mas muito limitada em pacientes com níveis sanguíneos de eosinófilos abaixo de 100 células·μL–1 (9). Essa indicação fica ainda mais evidente após o primeiro estudo observacional de mundo real da terapia tríplice com inalador único na DPOC que sugeriu que os pacientes que receberam terapia tríplice tiveram uma incidência semelhante de exacerbação moderada ou grave durante o primeiro ano de uso quando comparados com aqueles tratados com dupla broncodilatação em inalador único. No entanto, a incidência de exacerbações foi significativamente menor com a terapia tripla para o subgrupo de pacientes com duas ou mais exacerbações no ano anterior ao início do tratamento e numericamente menor para pacientes com diagnóstico prévio de asma e naqueles com contagem elevada de eosinófilos no sangue        
(>300 células/μL). Por outro lado, a incidência de exacerbação da DPOC foi ligeiramente maior com a terapia tríplice para os pacientes que não apresentavam esses três fenótipos. A incidência de exacerbação grave e pneumonia grave com necessidade de hospitalização e mortalidade por todas as causas foi maior com a combinação tripla de inalador único em comparação com um broncodilatador duplo(10). Dessa forma, e conforme preconizado pelo documento GOLD 2023(4), o grupo de pacientes exacerbadores e com eosinófilos aumentados é o que se beneficia da terapia tripla e a dupla broncodilatação permanece sim como o grande pilar terapêutico dos pacientes com DPOC(10).

Apesar da cada vez mais consolidada identificação do grupo de pacientes com DPOC que mais se beneficiará do uso de terapia tripla, estudos em diferentes países têm demonstrado o uso excessivo e inadequado de CI em pacientes com DPOC leve ou moderada com baixo risco de exacerbações(11,12,13). Também num estudo brasileiro(14) o uso do CI foi significativamente mais frequente nos portadores de DPOC moderada e nos grupos de menor risco de exacerbação, identificado em mais da metade dos indivíduos dos grupos GOLD A e B (54,5% e 54,3%, respectivamente), assim como em 46,2% dos portadores de DPOC moderada. Precisamos observar que o uso do CI não é isento de para efeitos. Uma suscetibilidade aumentada a infecções é um efeito colateral reconhecido do uso de corticosteroides sistêmicos. Entre outras propriedades, os corticosteroides, incluindo o CI, diminuem a produção de citocinas pelos macrófagos, tão necessárias para a imunidade antibacteriana(15).

Uma recente revisão sistemática com metanálise(16) observou um risco significativamente aumentado de efeitos colaterais locais, como candidíase oral e disfonia; e aumento do risco de alguns efeitos sistêmicos, como infecções respiratórias (pneumonia e micobactérias). Outros efeitos colaterais sistêmicos, como desfechos relacionados ao diabetes e fraturas ósseas, foram significativamente associados a CIs em altas doses e a exposições prolongadas em alguns estudos, especialmente estudos de coorte e estudos de caso controle. Os autores não encontraram evidências claras de aumento do risco de sepse, distúrbios oculares, hipertensão ou supressão adrenal. Essa metanálise(16) com dados de 19 ECRs demonstrou um aumento de 41% no risco de pneumonia com CI, e esse aumento significativo também foi observado em estudos de coorte e caso controle. Uma revisão sistemática recente(17) de evidências de estudos de comparação direta mostrou um risco significativamente aumentado de 13,5% e 14,4% para pneumonia e pneumonia grave, respectivamente, entre fluticasona em comparação com usuários de budesonida.

Um aspecto importante é o uso do CI em país de alta prevalência de tuberculose como o nosso. O efeito imunossupressor dos CIs tem sido relacionado a um risco aumentado de TB e doença pulmonar por micobactérias não tuberculosas. No entanto, esse efeito não tem sido observado em estudos clínicos, onde a sua grande maioria são desenvolvidos em países com baixa prevalência da doença e o tempo de seguimento também parece ser um fator limitante. Outro estudo recente(18) observou uma taxa de incidência de tuberculose variando de 0,15 a 0,17 por 100 pessoas-ano em usuários de fluticasona ou budesonida, respectivamente. Curiosamente, um dos fatores de risco mais importantes para o desenvolvimento de tuberculose em usuários de CI é a história prévia de tuberculose; portanto, a incidência desta doença em pacientes com DPOC tratados com CI é muito diferente em diferentes áreas geográficas, dependendo da prevalência local(16). Também importante observar que cada mês de uso de CI em altas doses foi independentemente associado a chances muito aumentadas de desenvolver infecção pulmonar por micobactérias não tuberculosas, mesmo após ajuste para outros tratamentos de doenças das vias aéreas e métricas de uso de cuidados de saúde(19).

Concluindo, a maioria dos pacientes com DPOC tem na dupla terapia broncodilatadora a base do tratamento para alívio da dispneia e fica cada vez mais evidente que o uso indiscriminado do CI pode acarretar em para efeitos indesejados.

 

Autor: Dr. Paulo J. Z. Teixeira, CREMERS: 16458              
Professor Associado do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Supervisor do Programa de Residência Médica em Pneumologia do Pavilhão Pereira Filho da Santa Casa de Porto Alegre.

Referências
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